Música desagradável, pt. 1 - Dona Elsa e o Planeta Lamma
A longa história de como eu me tornei uma pessoa que gosta de música que ninguém acha que é música.
Tudo começou com um camarada de dreadlocks. Minha avó Elsa (diga sim) morava no Edifício Jangadeiro em Ipanema, defronte à Pça. General Osório, sendo que de seu apartamento não enxergávamos a praça e sim o vão formado pela parte de trás dos prédios no quarteirão - na verdade um trapezião - formado pela própria Rua Jangadeiros junto com a Visconde de Pirajá, Gomes Carneiro e um tiquinho de Prudente de Morais, que ali mesmo naquele cantinho do bairro consegue a proeza de rodear uma ilhota de calçada de onde tomávamos fôlego pra terminar de atravessar a rua a caminho da praia. Muitos anos depois, eu ainda acho esse vão interno1 a melhor imagem para a música "Cinema Janela" do Paulo Francis Vai Pro Céu, e ali eu fiquei dias e horas valiosas vendo da janela cenas curiosas, mas estas são outras histórias.
Então D. Elsa morava ali e gostava de passear pelo bairro. Fazíamos passeios longos por Ipanema - cujo cheiro é uma mistura na proporção exata de um terço de creolina, um terço de vazamento de gás e um terço de cocô de cachorro - e o passeio mais comum era pela Visconde de Pirajá indo até a Pça. Nossa Senhora da Paz. Às vezes rolava uma parada no Bradesco, onde durante um tempo tinha um R2-D2 falsiê operado à distância por uma pessoa com um microfone que conversava com as crianças. Perto da esquina da General Osório formada pela Teixeira de Melo com a Visconde de Pirajá, na época, tinha uma Lojas Brasileiras e na frente dela ficava um camarada muito esquisito vendendo discos.
Durante ANOS, anos mesmo, era batata: ele estava sempre ali conversando com algum transeunte, os discos espalhados pela calçada. Não era um camelô que corria do rapa, não era um mendigo - ou pelo menos não era um mendigo comum, era um mendingo que salvava o praneta - e os discos que ele vendia em sua maioria tinham fotos dele na capa. Constatações feitas ao longo de muitas saídas, muitos dias, nas quais eu inclusive tentava driblar as manobras que D. Elsa fazia para que eu não fosse ali conversar com aquele camarada, ou mesmo me deter olhando por tempo suficiente para entender melhor do que se tratava.
Tendo aprendido a ler, comecei a decifrar o nome que aparecia em algumas capas, Dami, Daminhão, Damião, Expelkansdfjknas, um pouco de cada vez, mais um pouco nas férias seguintes. Ele era persistente, eu também era e D. Elsa também fazia o que podia para evitar que o neto entrasse em contato com aquela maluquice.

Com o tempo tudo foi mudando, como é natural do tempo mudar as coisas, e não só eu entendi que aquele era o Daminhão Experiença - uma das muitas grafias possíveis para o nome deste grande artista, e a que eu normalmente uso - e quando eu já era dono do meu próprio nariz percebi que Daminhão deixara de aparecer por ali com a mesma regularidade, e eu também nunca morei no Rio e só ia ocasionalmente visitar a minha avó. Em 91 o Miranda fez uma matéria sobre ele na BIZZ e eu senti uma espécie de orgulho besta por conhecer - literalmente desde criancinha - aquela figura celebrada por um dos maiores especialistas em música estrambólica de todos os tempos, e que alguns anos depois se tornaria um grande amigo.
Então eu sabia quem ele era e sabia que ele fazia um som muito doido, só tinha um problema: eu nunca consegui comprar um disco dele, e ninguém que eu conhecia tinha disco, fita, o que fosse do Daminhão Experiença. A única forma de ouvir Daminhão era sua partipação - inegável e incontestável, mas que ele posteriormente renegaria - na faixa “Forró de Janeiro” do Luiz Melodia.
Entre meados dos anos 90 e a década seguinte a figura de Daminhão foi se tornando cada vez mais celebrada e citada por quem gostava de som alternativo e/ou radicalmente idiossincrático, e o surgimento de artistas como Rogério Skylab e o Zumbi do Mato invariavelmente apontavam para esta referência. Mas é fato que só quando o compartilhamento de arquivos pela internet se tornou o passatempo preferido da classe média com conexão discada é que Daminhão realmente começou a ser ouvido para quem não teve a sorte - ou a sagacidade, no meu caso - de comprar um disco diretamente das mãos dele. Já em uma matéria na Outra Coisa em 2006 o Gilmar Rodrigues é taxativo: “todos os discos estão nas mãos de colecionadores”. O próprio Daminhão, entretanto, sempre poderia ser encontrado na esquina da Pirajá com Teixeira de Melo, mas nessa época minha avó já não morava mais por ali.
Até chegarmos na era Napster / Soulseek, Daminhão era uma figura meio feito John Cage e Luigi Russolo2, uma influência muito mais axiomática / teórica do que um som que as pessoas de fato conseguiam ouvir, e comigo foi exatamente assim. No que pese que sempre foi mais fácil achar discos do John Cage e você sempre pode ouvir e/ou executar sua própria versão de 4’33”.

E foi dessa forma que eu mesmo consegui ouvir, finalmente. Estudiosos dividem a obra de Daminhão em diferentes fases mas é curioso como na primeira - a mais acústica de todas - sua suposta loucura traça um mapa claro da musicalidade de matriz africana a partir da diáspora, tanto a diáspora do Atlântico quanto a diáspora interplanetária da cosmogonia Experienciativa. O Damião Ferreira da Cruz foi uma pessoa que viveu no século XX e ouviu música no rádio, na televisão, morava em Ipanema onde a turma prafrentex tinha acesso a tudo do bom, do mal e do pior da civilização ocidental, então é provável ainda que não seja certo que algumas influências chegaram por aí. Mas é a consciência universal de Daminhão que propõe outras abordagens e proporciona a rara oportunidade de acessar o que está por trás dos panos multicoloridos da vida comum.
Hoje em dia é possível baixar alguns de seus discos no Portão do Daminhão3, o livro que vinha encartado em alguns dos discos, tem no YouTube disco pra ouvir e documentário pra ver, tem um álbum no Spotify com 104 faixas, inclusive. Como eu mesmo levei muito tempo para ouvir Daminhão de fato, entendo sua influência no meu gosto musical muito mais a partir do impacto daquela figura e da curiosidade que ela gerou em mim, meio aquilo que eu falei ali em cima. Mas eu também posso ter sido abduzido por alienígenas do Planeta Lamma e ter recebido um implante de um microchip extraterrestre, o que explicaria muita coisa.
Daminhão seguiu perambulando por Ipanema até sua morte em 2016. Eu e meu irmão, normalmente à noite e normalmente bêbados, chegamos a encontrar com ele algumas vezes, mas nossa interação se resumia a ele olhar pra gente, dizer “Daminhão Experiênça” três vezes e tomar seu rumo. Nessa fase era comum ver pichações dele em tapumes de obra e paradas de ônibus pelas ruas, mas infelizmente um disquinho que fosse eu nunca mais o vi vendendo.
Dá pra ver do satélite, inclusive.
O próprio John Cage foi um dos grandes responsáveis pela celebridade do Russolo e seus intonarumori, ainda que fosse extremamente difícil ouví-los de fato.