O privilégio (ou não) de inexistir
Quando o lugar onde tudo está de repente não tem tudo.
Nossa espécie é muito eficiente na criação de coisas que viabilizam péssimos hábitos, independente do quão engenhosa seja a existência desta própria coisa. Desde que Willis Carrier, a quem se atribui a invenção do ar-condicionado moderno, botou suas maquininhas pra jogo as pessoas simplesmente se esqueceram de fazer prédios e lugares em que se pode abrir as janelas, por exemplo. Naturalmente, a rede mundial de computadores e todos os seus penduricalhos são povoados por umas vasta população de péssimos hábitos - como participar de reuniões de trabalho usando apenas roupas íntimas ou arquivar informações importantes num grupo feito só consigo mesmo no zapzap - e dentre eles um dos piores é a crença de que “tem tudo na internet”, seguida de perto da crença de que coisas que estão na internet lá estarão para sempre.
Claro, o c* verde vai sempre estar na internet. Se você duvida ou não sabe do que se trata, vai lá na pesquisa e digita. Tem que trocar o asterisco (*) pela letra “u”, ok? Por mais que eu acredite que a gente não precisa explicar este típo de coisa, o nível de incapacidade de interpretação de texto hoje em dia é tão alto que sei lá, melhor explicar. Esse tipo de coisa vai estar online enquanto existir internet. Ninguém nunca há de digitar “c* verde” numa caixa de pesquisa e ficar sem resultados extremamente gráficos. E olhe que isso aconteceu no carnaval de 2017, tão perto e tão longe de desenvolvermos um certo asco ou pelo menos um grande receio com a bandeira do Brasil.
Porém, parafraseando o prof. Juvenal Barbosa, a internet é fascinante mas tem lacunas. Tem lacunas no sentido de vazios de coisas que já estiveram lá, mas não mais estão, como por exemplo o vasto acervo de música independente que esteve disponível na Trama Virtual, ou gerações e gerações de blogs - no que eu percebo que o meu do blogspot ainda está lá, mas sabe-se lá até quando - e muita coisa multimídia que hoje em dia não está mais disponível. Você pode achar uma imagem de alguma dessas coisas na Wayback Machine, mas o lance mesmo já era. Isso começou a fazer algumas cócegas no meu cérebro na época em que eu estava escrevendo a minha tese de doutorado e muito material sobre o Tony da Gatorra que eu já tinha visto online não estava mais acessível e havia pouco registro de em algum momento lá ter estado.
Mas também há lacunas que não são exatamente vazios, talvez por nunca terem ocupado nenhum espaço. Coisas que não foram inseridas na internet, talvez, por mais que seja difícil de mensurar ou entender o processo desta ausência. Da mesma forma que muitas vezes operamos na lógica de “se está na internet, deve ser verdade”, o oposto se aproxima também, coisas que não estão na internet provavelmente nunca existiram. Um pouco como a célebre foto de Jones, Aaronson e Rutherford em 19841, muitas coisas por não estarem na internet podem jamais existido, ou existem na memória das pessoas sem outros meios que comprovem sua existência.
No meu caso, o meu momento Winston Smith é um trecho de um episódio da novela (ou série) “Braço de Ferro”, que era uma espécie de proto-malhação ambientada num bairro de São Paulo no começo dos anos 80, e que envolvia algumas crianças - entre elas Selton Mello - que formavam um clubinho e andavam muito de bicicleta. Eu, pessoalmente, não andava de bicicleta na rua em São Paulo naquela época, eu morava em um bairro meio chique e todo de ladeiras, mas assistia “Braço de Ferro” avidamente, assim como as aventuras do Tio Maneco e Bambalalão. Acho que a Gigi do Bambalalão foi a minha primeira grande paixão, por sinal. E por algum motivo eu tenho muito mais lembranças dessa galera lado B do que do que quer que fosse que passava na Globo na época

Então num determinado episódio uma personagem mais velha, talvez uma tia ou avó de alguma das crianças, tem um episódio de alteração de consciência e desenvolve uma obsessão por paçoca. Eu não lembro se ela batia com a cabeça e ficava doidona, se tomava um susto ou uma poção mágica, eu sei é que ela de repente estava obcecada com paçoca, queria comer paçoca o tempo todo. E aí num determinado momento ela começa a cantar “Banho de Espuma” da Rita Lee, sendo que a banheira não seria de espuma, mas de paçoca.
Veja que na época eu não gostava - ainda - de paçoca. Ou pelo menos não me lembro de já gostar de paçoca. Mas acho que a imagem que se formou na minha cabeça daquela senhora com outra pessoa em uma banheira de paçoca, ou só mesmo ela cantando “Que tal nós dois numa banheira de paçoca?”, algo criou essa marca na minha memória que persiste até hoje.
Eu ia colocar um link da música original, mas achei essa videoclip da Rita Lee na TV italiana que é muito melhor. De modo que fica para a posteridade este registro, e quem sabe algum dia - espero que não como parte de uma sessão de tortura - eu veja novamente um lampejo deste momento único do audiovisual brasileiro.
Outro aspecto deste fenômeno não se trata exatamente da lacuna ou da ausência, mas de coisas que por motivos diversos não são fáceis de achar. Como por exemplo uma música que eu lembro de escutar muito quando adolescente e jovem adulto, uma lambada de guitarra com o refrão “Mas essa é a lambada das mulheres, vamos dançar a lambada das mulheres”. Durante muito tempo eu procurei na internet “lambada das mulheres” e os milhares de resultados nunca apontavam para a música da minha memória. Até que eu resolvi digitar o que eu lembrava da letra e descobri que, pasmem, o nome da música é “Mas Essa É a Lambada das Mulheres”. Quem diria.
Muitas coisas estiveram na internet e não estão mais. E isto talvez comprometa sua própria existência fora da internet. Depois de escrever este texto e achar que o tinha publicado, eu ouvi um episdódio do podcast do Parteum em que ele fala algo que me lembrou destas coisas que eu falei aqui. Aí como hoje eu descobri que este texto não tinha sido publicado, fiz uma revisão e resolvi incorporar o podcast que veio depois já que agora tudo virou antes. Não tenho tanta certeza se o episódio é mesmo este, mas vale a pena ouvir todos eles:
O livro, não o ano. Mas no ano teve um filme sobre o livro.